Páginas

sexta-feira, 29 de abril de 2011

vô e vó

Começo declarando que este post não faz muito sentido. Não tem haver com a Europa, com viagens, com o meu estar aqui...
Estava eu aqui "fuçando" em meus textos e descobri este, que escrevi há algum tempo sobre meu vô e minha vó. Até os meus 11 anos convivi muito tempo com eles, e tenho muito carinho pelas lembranças que tenho dessas pessoas que foram e ainda são tão especiais para mim.
Então resolvi postar aqui como uma forma de homenagem, um tanto estranha, um tanto perdida em meio à isso tudo, mas enfim.. este post não faz muito sentido. Não tem haver com a Europa, com viagens, com o meu estar aqui... (ou tem?)

*Só para esclarecer, são eles na foto antiga. Eu sou a pequenina no colo do vô, e meu irmão espia abaixo um não-sei-o-que.



VÔ E VÓ

Era o senhor do tempo. Dia e noite, a ajustar os relógios alheios. E nem sequer sentia o toque do cuco. Era mais do que o tempo, e já não tardava a noite escura, com seus bichinhos a rodear as lâmpadas fluorescentes e a fazer buracos nas madeiras.

Era osso e era suspensórios folgados. Com seu banquinho a tiracolo e rádio AM ligado, partia para a sua horta e seus temperos que à mulher dava.

Era alto, e magro. Gostava de piadas pesadas e de pescar lambaris, trazendo-os – pequenininhos e fracos – para que a mulher lhes tirasse as tripas e se restasse algo – restava? - fritarem na noite fria.

De manhã saía. Andar devagar, pés com chinelas velhas de quem cansou de calçá-las, de qualquer jeito estão. Enfurecido por lhe usarem a cadeira preferida, a de balanço, e porem-lhe os pés, solta um grito de quem não gosta e faz todos se encolherem, amedrontados.

Só toma banho nos sábados. Mas gosta de piadas. Ahh, ri com piadas infames e curtas. E é homem macho que nunca chora.


Era a senhora das comidas. Aquela que guardava a manteiga de cacau na geladeira para usarem na boca quando muito frio havia. E botava álcool líquido na vasilha de alumínio para aquecer o banheiro gelado dos banhos quentes. Ai, os banhos. Como era difícil entrar, mas ainda mais sair, depois de ter se esquentado. “Saia, que daqui a pouco teu vô chia!” Tinha razão de chiar, a resistência era baixa. E se a energia caísse era preciso subir a chácara toda, ir lá, próximo ao portão, para ligá-la novamente. Mas da senhora que falávamos. Havia sido professora, com seus alunos de coração. Todos os dias pensava em desistir, mas todos os dias retornava às aulas. Ela precisava deles. Digo.. Eles precisavam dela. Tal foi o dia em que abandonou tudo para se casar. Bonito casamento, alegria da família. “Os declaro marido e mulher até que a morte blábláblá”. Mas sim. Era boa professora. Estudada. Reconhecida. Tinha tudo para ser orientadora de classe. Mas veio a família, as barrigas, os filhos. Passou das crianças aos panos costurados. Silenciosamente, lá, anos depois, quando o avô fugia.. ops.. digo.. quando o avó ia até a horta, a vó passou a costurar roupas de bonecas para a neta. E como eram bonitas, presas na árvore de natal na noite sagrada. Com os nomes de cada boneca da neta, feitas sob medida enquanto esta estudava com outras professoras na cidade. Era chácara já. Depois, algumas bonecas esquecidas na chácara.. e uma ou outra 'liçãozinha' para elas dada pela avó, para não perder o costume.


Era o casal. Um passado esquecido de onde mágoas floresciam, e um presente rotineiro e breve. Um ataque. Uma demora. Uma morte. Uma culpa. Lá estava ele, aquele que nunca chora. Lá estava ela, ainda entre flores (também ela possuía uma horta). Lá estava o tempo, quieto. Ele e a chácara. Ele e a manteiga de cacau na geladeira. Cansado, sentou-se na cadeira de balanços. Pés para cima, como os netos. “Que grande farsa”, pensou. Na televisão, programa domingueiro de risos gravados que nada tinham de novo nem belo. Nem graça. Ele lá estava. Com as bonecas e sem lições. Com as roupas e sem corpos. Com. Sem.

Hospital. Remédios. “Dê tempo a ele”. Tempo, logo o tempo. O massacre de quem sempre era massacrado com lentes e parafusos e apertos e roscas e ponteiros tortos de tão retos. Lá estava ele, deitado na cama fria, à espera de uma sintonia exata de radinho sem pilhas e mudo. E a tempestade mostrou-se doce; e o inverno declarou-se ameno, e ele foi à procura dela, juntar-se às flores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário